Direto da Fonte - Como surgiu a ideia de fazer a matéria sobre as guerras desconhecidas?
Leonencio Nossa - A ideia inicial era fazer um levantamento da repressão aos movimentos populares durante a ditadura Vargas (de 1937 a 1945). Logo percebi que a brutalidade do Estado em relação a comunidades de pessoas humildes foi uma constante em todo o século 20.
DF- Quais foram as dificuldades encontradas pela equipe durante a apuração da matéria?
LN - Não foi fácil localizar testemunhas e protagonistas de conflitos ocorridos na primeira metade do século 20. Quando encontrávamos alguém que participou dos combates, a pessoa tinha receios de falar. As marcas das guerras ocorridas há 50, 60 anos ainda são fortes. Também enfrentamos dificuldades em encontrar processos cíveis e criminais nos cartórios e arquivos públicos, que costumam não dar valor a histórias da população de baixa renda.
DF - Os nomes dos conflitos estão no material pesquisado ou partiu de você nominá-los ?
LN - Os títulos levaram em conta documentos e depoimentos orais. Algumas guerras receberam mais de um nome nos locais onde foram deflagradas. É o caso do conflito ocorrido nos anos 1940 e 1950 no norte do Paraná, envolvendo posseiros, grileiros e o governo estadual. Documentos da época fazem referências à Guerra de Porecatu e à Guerra da Coréia Paranaense. Optei em usar Guerra do Quebra-Milho porque é assim que o conflito era e é chamado pelos participantes.
DF - Por que essas guerras ficaram por tanto tempo desconhecidas da população? A história não tem interesse nelas por uma questão estatística – o numero de mortes em alguns casos não chega a dois dígitos?
LN - É possível que esses conflitos tenham sido esquecidos por que seus líderes eram homens e mulheres sem vínculos com partidos políticos, igrejas ou organizações nacionais. Os protagonistas das guerras genuinamente populares não costumam servir de modelo para bandeiras políticas.
DF - Qual dessas guerras o impressionou mais? Por quê?
LN - A guerra de Pau de Colher, em Casa Nova, impressiona pelo grau da repressão que deixou um saldo oficial de 217 mortos. As guerras dos Perdidos e do Gatilheiro Quintino impressionam pelo pragmatismo dos posseiros, que foram ousados nas táticas de defesa e ataque.
DF - Um dado que deu para observar foi a participação de mulheres nas guerras. Cananéia, Dica e Donária são algumas delas e num tempo em que mulher tinha papel secundário na sociedade. A que você atribui isso?
LN - Com toda sinceridade, só fui perceber a quantidade de mulheres no conjunto das guerras quando olhei pela primeira vez as provas do jornal numa mesa da redação, em São Paulo. Fiquei surpreso e, ao mesmo tempo, realizado em ajudar a revelar a história daquelas mulheres. O caderno ficou mais bonito. Ao longo da apuração, via com naturalidade a presença das mulheres nas histórias. Eu tinha realizado um trabalho anterior sobre a guerrilha do Araguaia, conflito ocorrido nos anos da ditadura militar, em que a participação de mulheres nos combates com o Exército foi muito forte. O Araguaia mostra que a vontade de alguém participar de uma guerra convencional ou irregular vai além do gênero. Nos últimos dias do conflito, praticamente só tinham restado mulheres no quadro guerrilheiro. É preciso observar que desde os primeiros tempos da colonização as mulheres tiveram participação efetiva nos conflitos. A mulher pode ter conquistado a emancipação política, o direito a voto, melhores condições de trabalho, bem tarde, mas seus instintos guerreiros estão registrados nas primeiras guerras de ocupação do território brasileiro. Elas podem ter tido um papel secundário em fases da nossa história, mas estiveram na dianteira em todos os momentos importantes, ainda que assumindo papéis tradicionalmente reservados aos homens.
DF - Fiquei impressionada com o depoimento de Maria Andreza Pinto. Depois de tantos anos, ela lembra com detalhes o dia que teve a família exterminada. Você conseguiu manter o distanciamento necessário da história do entrevistado ou se emocionou?
LN - Você ficaria mais impressionada se ouvisse na íntegra a gravação da entrevista. Maria relatou também sua vida após a guerra, em Salvador, de 1938 aos dias atuais. Eu não queria parar de ouvir. É uma personagem incrível da história da Bahia e do Brasil. Quando um repórter está envolvido na produção de uma reportagem ele deve se comportar apenas como um contador de história. A emoção pode prejudicar a análise dos fatos.
DF - No texto de abertura da reportagem, você ressalta que entender 'as guerras do passado ajudam a explicar problemas atuais'. Exemplifique, por favor.
LN - Todas as guerras que analisamos, no Sul, no Centro Oeste, no Norte ou no Nordeste, apresentam características semelhantes. Esses conflitos ocorreram sempre nas regiões mais pobres dos estados, onde não há asfalto, escolas e postos de saúde. A vida de uma pessoa de baixa renda no Rio Grande do Sul ou no Piauí apresenta as mesmas dificuldade no dia-a-dia. O Estado brasileiro só costuma percorrer esses rincões para cometer violência. A ausência do Poder Público nos grotões explica as guerras do passado. E para conhecer as causas dos conflitos, nada como conversar com as pessoas, ouvir seus problemas atuais que, em muitos casos são os mesmos que motivaram as guerras.
DF - Foram 17 meses percorrendo 13 mil quilômetros, entrevistando mais de 300 pessoas em 41 cidades em dez estados do Brasil. Os números que envolvem essa reportagem são gigantescos. Haverá desdobramento do material colhido na apuração? Vai surgir algum livro?
LN - Um livro é uma alternativa para divulgarmos histórias que ficaram de fora do caderno.
DF - Embora tenham motivações diferentes, você acredita, por exemplo, que a guerra que vemos todos os dias, a que envolve o narcotráfico, sobretudo nas favelas, pode ser esquecida daqui a alguns anos, sendo excluida ou omitida da história?
LN - A história construída por governos ou pela política pode omitir ou excluir o drama de camadas mais pobres da população. Talvez esse "esquecimento" ajude a entender o motivo dos governos federal e estadual recorrerem aos mesmos métodos fracassados do passado para combater o crime e melhorar a qualidade de vida das pessoas nas favelas cariocas: repressão, repressão, repressão e pirotecnia. Não há investimentos maciços em educação nas áreas de risco de qualquer canto do país. É sempre bom dizer que o país investe apenas 5% do seu PIB no ensino. É preciso observar que as marcas da violência não são apagadas da memória das pessoas que vivem nessas áreas
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